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Introdução aos Estudos da Literatura
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    IV
    CAÇADA

    Quando a cavalgada chegou à margem da clareira, ai se passava uma cena curiosa.
    Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.
    Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates : caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem(...)
    Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca : de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita calda, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo. (...)
    Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia, e se agitava imperceptivelmente.
    Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.
    Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco. (...)
    O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.
    Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira. Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
    O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.
    Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.
    Como, porém, o italiano, com o arcabuz : em face, procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:
    —É meu!... meu só!
    Estas palavras foram ditas em português, com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.
    O italiano riu.
    —Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga?... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo; ela vo-lo agradecerá.
    Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina :que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva.
    Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
    A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros prosseguiram a sua marcha, e entranharam-se de novo na floresta.

    Disponível em: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-01154.html. Acessado em 25/04/2006.